sábado, 29 de abril de 2017

A farra sindical


Ruy Fabiano é jornalista

O fiasco da greve geral de ontem – convocada sem que nenhuma assembleia sindical tenha se manifestado – mostra que essas entidades, desviando-se de suas finalidades estatutárias, disputam hoje com os partidos políticos o troféu de desgaste popular.
Como os partidos políticos, só que numa escala bem maior, pulverizaram-se e passaram a servir-se do público para atender interesses privados. Criam-se sindicatos, assim como partidos, para se ter acesso ao dinheiro público que os sustenta.
 
Os partidos recebem as verbas do fundo partidário; os sindicatos, do imposto sindical – um dia de trabalho por ano de cada trabalhador, sindicalizado ou não. Há hoje, em decorrência, uma elite sindical milionária que se consolidou ao longo da Era PT.
O pretexto para a greve geral – as reformas trabalhista e previdenciária – não gerou a mesma reação quando o patrocínio era dos governos Lula e Dilma. As propostas eram equivalentes, mas não embutiam um detalhe: o fim do imposto sindical. E é ele que está na raiz da greve frustrada de ontem, não as reformas em nome das quais foi convocada. A República Sindical é cara, ineficaz e bizarra.
 
A propósito, alguém já ouviu falar de um certo Sindicato das Indústrias de Camisas para Homens e Roupas Brancas de Confecção e Chapéus de Senhoras? Pois é. Funciona (?) no Rio de Janeiro.
Há outros, assemelhados, como o Sindicato da Indústria de Guarda Chuvas e Bengalas de São Paulo. Ou ainda o Sindicato dos Empregados em Entidades Sindicais, isto é, um sindicato de funcionários de sindicatos. Seria até engraçado se por trás não houvesse alguns bilhões do contribuinte.
 
Há no Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, nada menos que 11 mil e 257 sindicatos de trabalhadores, sem contar federações, confederações e centrais. E não é só: não cessam os pedidos para a criação de novos, que já não se classificam apenas por categoria, subdividindo-se, em alguns casos, até por local de trabalho.
Por exemplo: não basta um sindicato para os comerciários. Há um de comerciários que trabalham em shoppings, que teriam natureza diferenciada da dos comerciários que trabalham em estabelecimentos sediados nas ruas e avenidas. Questão de CEP.
 
A criatividade, em busca de fatias do imposto sindical, não tem limites. Cria-se numa ponta uma entidade patronal, o Sindicato de Empresas de Desmanche de Veículos (Sindidesmanche), e na outra uma entidade de trabalhadores do mesmo ramo, o Sindicato dos Inspetores Técnicos em Segurança Veicular (Sintseve).
À frente de ambas, os mesmos dirigentes: Mario Antonio Rolim, Ronaldo Torres, Antonio Fogaça e Vitorio Benvenuti, todos ligados à mesma Central, a Força Sindical, do deputado Paulo Pereira, do PDT, que, aliado de Lula e Dilma, não hesitou em aderir a Temer.

O imposto sindical foi criado por Getúlio Vargas, nos anos 40, mas, graças à Lei 11.648, de 2008, se estendeu às centrais sindicais. E graças a um veto de Lula ao artigo que submetia esse repasse à fiscalização do TCU, não é necessário que as centrais prestem conta do que é feito com essa bolada – que não é desprezível.
 
Em 2016, os sindicatos receberam R$ 3,6 bilhões; só as centrais sindicais, de 2008 a 2015, R$ 1 bilhão, sem precisar explicar o que dele fizeram. Esse dinheiro chega aos cofres do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e é depois repassado pela Caixa Econômica Federal. Uma festa.
Em tal ambiente, não é difícil entender a proliferação de sindicatos, que crescem na razão inversa à qualidade do atendimento ao usuário. Mas compreende-se: não se expandiram com essa finalidade, mas para servir a um projeto de poder, graças ao qual consegue tumultuar a vida do país, falando em nome de quem não representa, mantendo-o no atraso em que ajudou a colocá-lo.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Procissão do Miserere*


Waldemar de Moura Santos

      H
á vários anos, o Movimento Renovador de Mariana, organização não governamental sediada na Casa de Cultura de Mariana e fundada pela saudosa Efigênia Maria da Silva, realiza, à meia noite de sexta-feira da Semana Santa, a já tradicional Procissão do Miserere. Essa procissão foi narrada pela primeira vez em Mariana pelo jornalista, historiador e escritor Waldemar de Moura Santos, um dos fundadores da Academia Marianense de Letras, no seu livro "Lendas Marianenses", editado pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, em 1967. Abaixo, a síntese transcrita do referido livro.
 
     "Durante as sextas-feiras da Quaresma, saía da igreja da Arquiconfraria de São Francisco do Cordão uma procissão em direção à igreja de São Francisco da Ordem Terceira da Penitência.
Era um cortejo formado por Irmãos falecidos e ninguém, vivo, podia assistir a esse macabro desfile, arriscando-se a quem o tentasse à severa repreensão dos componentes. Os moradores da Rua Nova ouviam dentro de casa, apavorados, os rumores da procissão lá fora, que era precedida por um grande crucifixo e os braços de São Francisco, cercada em alas de Irmãos que conduziam velas de cera acesas.
     Os residentes da Rua Nova, hoje Dom Silvério, por precaução ou medo, jamais procuraram observar a movimentação do préstito, contentando-se, somente, em ouvir os cânticos tétricos ou a lamentação lúgubre desses fiéis defuntos em peregrinação pelo mundo. Todos conheciam e atestavam a realidade dessas procissões de alma às sextas-feiras da Quaresma, mas de perto ou de relance ninguém podia confirmar a existência real delas. Perdurava profundo mistério. Alguns mais ousados tentaram observá-las de longe, outros mais destemidos tentaram impedir a marcha da procissão.     Depois de várias tentativas inúteis, a população sossegou, contentando-se em ouvir e jamais espreitar a macabra procissão de almas, cujas alas se engrossavam à proporção dos anos vencidos.
 
     Um fato, entretanto, aconteceu para arrepiar os cabelos. Uma senhora viúva e respeitável macróbia mudou-se para uma das casas da rua Nova, pois tinha sido despejada de um casebre e repudiada por todos os moradores da rua de São Gonçalo, onde tal mulher era tida como mexeriqueira das mais perigosas. Falava o que sabia e o que ignorava. Era uma faladeira profissional e temível. Nada lhe escapava da língua ferina. Era o diabo em figura de gente. Isolada, passou a espreitar até altas horas da madrugada a vida noturna dos noctívagos inveterados. Certa noite, a velha gazeteira, debruçada sobre a janela, olhava despreocupadamente, a rua ensopada e escuta os ruídos da enxurrada no meio da calçada. Sem que esperasse, surge a procissão do Miserere e um dos Irmãos, envergando um hábito preto e de capuz, ofereceu-lhe uma vela. A terrível mulher recebe a vela e a deposita em cima da cama, voltando à janela para contemplar ao longe o retorno do desfile. À volta, conservando-se no mesmo lugar, o Irmão exige a entrega da vela. A matreira mulher vai pressurosa ao quarto e, ao invés da vela de cera, encontra uma ossada de defunto, constituído de uma canela ainda envolta em terra.
 
     - Mulher, disse o Irmão, guarda sua língua e deixa a noite para os mortos. O sono dos vivos é o prelúdio da morte. Não seja curiosa.
Passados alguns dias, morreu a velha mais faladeira da Rua Nova”.
 
*Excerto extraído do livro “Lendas Marianenses”, na 1ª edição do livro lançado em 1967 e reeditado em 2012. A ideia de encenação da Procissão do Miserere, que sai às ruas à meia noite de sexta feira santa há muitos anos, atualmente denominada “Procissão das Almas”, partiu do Movimento Renovador de Mariana, entidade cultural sediada na Casa de Cultura de Mariana por intermédio da saudosa Efigênia Maria da Silva” fundadora e então presidente daquela instituição até sua morte ocorrida em 2008”.