Tento, em vão, transportar-me em pensamento até a longínqua e de nome poético Vila de Santa Bárbara das Canoas, de mais de cem anos atrás. Procura desenhar mentalmente a paisagem, o casario, as pessoas que testemunharam o nascimento e os primeiros meses de vida daquele garoto nascido em 16 de maio de 1906 no pequenino burgo localizado ao sul do Estado, que mais tarde se chamaria Guaranésia.
Como mulher e como mãe, busco imaginar como se sentiu a musicista Carlota Odorica de Moura Santos, durante a aventura da longa viagem do sul até o coração de Minas, Mariana, empreendida em companhia de seu marido, o professor José Pedro Claudino dos Santos e de dois filhos pequenos, um dele Waldemar, de apenas nove meses.
Aquela viagem, parte a cavalo, parte de trem. Cortando a vastidão dos campos gerais e a ondulação das silenciosas montanhas onde, ainda hoje, se escondem segredos das minas marcou, para sempre, o itinerário do pequeno santabarbarense do sul.
Foi a partir daí que a atormentada e fascinante consciência dos mistérios das montanhas entre as quais se aninha a terra-mãe, que o acolheria para sempre, como um dileto filho, começou a povoar seus sonhos e alimentar seu ânimo, que prevaleceu sobre quaisquer desafios, durante os quase oitenta anos de seu convívio com sua amada Mariana.
Não foi por acaso, mas por inspiração desta terra que amou tanto, que o menino irrequieto e talentoso, já aos oito anos de idade fundou seu primeiro jornal. Manuscrito, caprichosamente editado e distribuído entre seus colegas de turma durante dois anos, aquele jornal foi o marco definitivo de sua trajetória de vencedor.
Nem foi por acaso, também, que o Ginásio Arquidiocesano, então funcionando em Mariana lhe conferiu, em um concurso de Oratória, o 1° lugar, quando ainda adolescente e estudante de Retórica e Literatura. Revelava-se, ali, além de seu gosto pelas letras, sua indiscutível vocação para o jornalismo, sua grande paixão.
Vencedor que foi desde cedo, na arte de escrever, aplicou-se em aprimorá-la ao fundar, em 1923, no “Externato Marianense” dirigido por Cônego Braga – um dos maiores benfeitores de Mariana no campo da educação e da cultura – o jornal “O Porvir”, que em suas páginas, durante quatro anos veiculou, com aguda sensibilidade jornalística, temas de interesse da juventude de seu tempo.
Jornalista, professor, literato e historiador, seus incontáveis feitos têm, na “Casa de Cultura/Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes”, - a primeira instituição no gênero em Minas Gerais, inspiradora de outras iniciativas semelhantes, - a síntese perfeita de suas inúmeras e vitoriosas realizações.
Foi pelas suas mãos que, ainda estudante no Colégio Providencia, ingressei nessa que é das instituições culturais mais respeitadas em Minas e no país.
Naquele penúltimo dia do ano de 1986. 30 de dezembro, em que ele nos deixou para sempre, saí da Casa de Cultura, nicho de saberes que ele concebeu e cuidou com tanto zelo, para registrar, com urgência emocionada, meu sentimento de então que, ainda hoje, persiste.
“(...) Contemplo, silenciosa, o esquife que abriga, na rigidez corpórea, o perfil, por fim apaziguado, de um guerreiro que jamais se concedeu uma trégua. A luz dos círios que presidem, hirtos, o aparato fúnebre, lança intermitentes reflexos sobre suas mãos cruzadas, produzindo-lhes um ilusório movimento... (...) Em seu dialeto irrecorrivelmente familiar a cada marianense, os sinos da Sé, do Carmo e do São Francisco falam de morte, de morte de homem, de homem importante. No confronto com o desconhecido, busco alento na lembrança de outros tempos. Vejo-me pouco mais que adolescente. O fascínio pelas “Lendas Marianenses” me impele para perto de seu autor. Troco até o caminho de volta do Colégio. Passar pela Rua Direita, parar na antiga sede do Correio, encostar-me no umbral da primeira porta para ouvir, deliciada, casos onde a fantasia e o real se confundem, é rotina sagrada. (...) Da leveza da lenda de ontem, do mistério do sonho de hoje, vai ele recompondo, para o futuro, a apaixonante história de Mariana. Transito pelo espaço dessa história pisando, passo a passo, sobre suas pegadas. E me descubro amando cada vez mais, traço por traço, signo por signo, esta terra-embrião das Minas, ressuscitada em sua verdade histórica pelo talento e pela sensibilidade deste cidadão que veio de Guaranésia. (...) Para aceitar tornar-me secretária da recém-nascida Academia – distinção inusitada para uma inexperiente jovem estudante – exorcizo minha insegurança com a benzedura de seu estímulo. Alego meu despreparo. Ele responde com sua fé inabalável na juventude. A voz ciciante, os gestos comedidos e discretos escondendo uma vontade férrea, uma coragem que desconhece fronteiras, um desmesurado amor por Mariana, quebram minha resistência (...) A sede própria veio muito tempo depois, fruto de sua perseverança, de sua obstinação, que nenhum quebranto conseguiu jamais aniquilar.
Foi bom, desafiante e belo exercer o ofício de secretária da Academia. Ao menino que veio de Santa Bárbara das Canoas e se tornou marianense por legítimo direito devo, com certeza, muito mais do que lhe pude retribuir.
Passadas décadas de sua partida, mais que nunca persiste, em mim, a consciência de que ele foi um vencedor. Sua presença na história cultural de Mariana é definitiva.
Sua obra prevalece. Para sempre.
Marly Moysés Silva Araujo, Educadora marianense.
*Fonte: artigo publicado no Jornal Panfletu’s, de 7 a 21.05.2015.
Meu comentário: Waldemar de Moura Santos, meu pai, foi um dos fundadores da Academia Marianense de Letras, instituição com quase 53 anos de existência e falecido há 28 anos, em 30.12.1986. Hoje, dia 16 de maio de 2015, ele está completando 109 anos de nascimento. Quero, através deste blog, em meu nome e no de meus irmãos, externar a nossa profunda gratidão à ilustre acadêmica Marly Moysés, primeira secretária que redigiu a ata histórica de fundação desta instituição artístico-cultural, pelo generoso e carinhoso artigo publicado no jornal Panfletu’s, datado de 7 a 21.05.2015. À nossa querida amiga e acadêmica Marly Moysés, o mais sincero agradecimento da Família Moura Santos!
Um comentário:
Marly, como sempre, brilhante! Merece elogios desmedidos e, na condição de familiar dentre os Moura Santos, tenho que agradecer a bela homenagem prestada ao Prof. Waldemar.
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