sexta-feira, 9 de abril de 2010

Por um minuto só de lucidez*

Israel Quirino, professor e advogado
Muito se tem comentado na cidade as ações de demolição de moradias ocorridas recentemente no Bairro Rosário, promovidas, não sei se pelo proprietário do terreno ou se pela administração municipal, em cumprimento do disposto no artigo 5º, XXII da Constituição Federal que assegura o Direito de Propriedade.
Leis não faltam para regular o tema, desde os tempos mais remotos. Rousseau teria dito que o primeiro homem que ergueu uma cerca em volta de um pedaço de terra e se auto-proclamou proprietário do lugar foi o fundador da sociedade civil. Pondera, entretanto, se outros, observando aquele ato, houvessem arrancado dali a cerca e expulsado o impostor teriam livrado a sociedade de incontáveis males.
Fato é que o direito de propriedade existe e é tutelado pela justiça, devendo o invasor ser mesmo repelido na sua intenção de usurpar os bens alheios e punido por sua conduta.
A questão, em Mariana, supera, em muito, a singela discussão do direito de propriedade. Beira ao caos! Criou-se a cultura da invasão de terras particulares, organizada por movimentos informais de moradores, proprietários de terras inúteis que promovem loteamentos clandestinos, ou deixam-se invadir a espera das polpudas indenizações por parte do governo municipal e, por diversas vezes, o próprio Poder Público, autor e conivente em várias oportunidades.
O que tem chamado a atenção (e a tensão) no momento, é uma possível e iminente ação de desocupação forçada da encosta do bairro Cabanas, área, supostamente, invadida durante o período pré-eleitoral de 2008. Num movimento frenético de ocupação digno de ser comparado a uma correição de formigas, dezenas de pessoas dizimaram o meio ambiente naquele local, desmataram, queimaram, cercaram, demarcaram, compraram e venderam terras de particular sem a menor cerimônia. Alguns ali construíram verdadeiras colônias com inúmeros barracos que foram vendidos, trocados, ocupados numa sanha alucinada... para lá acudiram fotógrafos, jornalistas, TVs, polícia militar e ambiental, fiscais da prefeitura, representantes do Poder Judiciário, oportunistas, curiosos, candidatos e cabos eleitorais que testemunharam o feito... versões para a ocupação são as mais diversas, restando, por derradeiro e apesar de todo o dano ali causado, uma única ação judicial do proprietário do terreno para vê-lo desocupado. Simples assim.
No limiar de uma eventual desocupação forçada, mais de um ano e meio após a ocorrência, percebemos que o número de ocupantes dali cresceu em proporções assustadoras, sendo, em uma primeira vista, quase impossível de se restabelecer a condição original da propriedade e do terreno.
Um aforista de última hora poderia evocar em favor dos ocupantes o disposto no Artigo 5º, XXIII da Constituição Federal, que determina a decantada “função social da propriedade”, e desta forma querer obrigar o Município a proceder a desapropriação da terra ocupada e doá-la aos ocupantes, aplicando ferramentas do Estatuto das Cidades (indenização com títulos da dívida pública, IPTU progressivo, etc., etc.). Grande irresponsabilidade, a meu sentir.
Num pensamento mais concatenado, vendo o Rio de Janeiro amanhecer debaixo d’água no início desta semana, é sensato ponderar se aquela terra, reconhecida pelo Plano Diretor como área imprópria à ocupação humana, pode ou deve ser urbanizada, ainda que o proprietário não receba um níquel sequer de indenização (se é que merece alguma).
O escoamento de águas superficiais na encosta do Bairro Cabanas, violentamente urbanizado nos últimos anos, impermeabilizado em quase sua totalidade, já provocou o colapso do sistema de drenagem da parte sul da cidade (a ponte do moinho é exemplo concreto e real disso). O volume de águas que desce do morro sucumbe a parte plana da cidade (proximidade do ICHS e do Campo do Guarany), condenando aquela população a frequentes inundações, que tenderão a se agravar em caso de nova expansão do bairro à montante. E quem promover tal ocupação deverá ser responsabilizado por tal ato.
Sabemos disso. Já testemunhamos isso. O exemplo está ali, nas ruínas da ponte do moinho que desafia a engenharia corretiva da Secretaria Municipal de Obras que tenta em vão domar a natureza e, quem sabe, revogar a lei da gravidade no caso das águas pluviais do alto do Cabanas.
Faltam-nos, no momento, dois conceitos essenciais: o de que a propriedade privada não deve ser invadida (o invasor é criminoso nos termos do artigo 161 da lei penal e como tal deve ser tratado); e que a função social da propriedade, muitas vezes, é não servir para nada mesmo. Oferecer-se para ser dreno natural das águas de chuva, moldura e proteção do cenário urbano.
Tenhamos um minuto só de lucidez. Urbanizar tais áreas é prejudicar o interesse da população à jusante (que mora abaixo delas) e que será, fatalmente, engolida pelas águas que virão. E não me venham dizer que sou profeta do apocalipse: Quem viver verá!
*Fonte: jornal “A Semana” nº 314, de 8 a 14 de abril de 2010.
Meu comentário: Durante muitos anos, em meus inúmeros artigos publicados nos jornais e neste blog abordando este assunto fundiário em Mariana, sempre fui contra essa criminosa indústria de falsas invasões de terra patrocinada pelos espertalhões latifundiários marianenses, que provocam enorme prejuízo ao município que, para evitar violência urbana e caos social, se vê na constrangida situação de fazer desapropriações milionárias por terras que não valem nada pois, conforme laudo do Instituto de Geologia da UFOP, são áreas de risco, sujeitas a inundação de rios e a desmoronamento de encostas.

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