João Paulo
O romancista Luís Giffoni escreve relato histórico sobre a vida de Frei Manoel da Cruz, primeiro bispo de Minas Gerais, português de nascimento que serviu ao poder de dom João V e às ordens da Igreja
O romancista Luís Giffoni tinha um personagem e tanto nas mãos. Ao pesquisar a vida de Dom Frei Manoel da Cruz, primeiro bispo de Minas, se deparou com um homem típico de seu tempo, mas capaz de levar às últimas conseqüências a dicotomia entre céu e inferno que marcou o século 18 brasileiro. No lugar da ficção, talvez por ser tão incrível a ponto de tornar a verdade ainda mais assombrosa, Giffoni escolheu escrever um relato histórico. Bom para o leitor. Com estilo distante do sotaque acadêmico, o escritor vai desvelando um homem com quem a história brasileira ainda precisa acertar suas contas.
O bispo que inaugura a diocese de Mariana, estabelecida em 1745, foi um homem de contradições poderosas. Se o barroco é considerado pelos filósofos como um estilo que funde lados díspares do homem e do mundo, Manoel da Cruz foi barroco até a raiz de seu temperamento e caráter. Português, chegou ao Brasil em 1739 por designação do rei de Portugal, dom João V, para ser o bispo do Maranhão, na cidade de São Luís. Não foi indicado ao acaso para Sé vacante. Era homem culto, diplomado em Coimbra, de origem nobre. E afeito aos negócios religiosos e palacianos.
Depois de oito anos no Maranhão, o bispo se dirige ao novo posto, a Sé de Mariana, criada pelo rei e referendada pelo papa Bento XIV. E vem com atraso, a ponto de receber um puxão de orelhas do rei, que decreta, curto e grosso, que “passasse logo à nova diocese a que fora promovido”. Além de demorar a cumprir a ordem, o bispo resolve percorrer os 4 mil quilômetros que separam o Maranhão de Minas a pé, atravessando sertão, caatinga e até ataques de índios. Adoeceu, sofreu naufrágio na travessia do São Francisco, passou por sangrias e outros tormentos. Tinha 60 anos – idade considerável para a época – e chega esgotado ao destino, precisando de semanas para se recuperar e tomar posse da função. Foram um ano e dois meses de “dilatada via” e “perigosa jornada”, como registraram as crônicas da época.
Não foi uma posse qualquer. Giffoni conta que, em matéria de pompa, só perdeu para o Triunfo Eucarístico, de 1733, que marcou a transferência do divino sacramento da igreja do Rosário para a do Pilar, em Ouro Preto. A solenidade de posse de dom frei Manoel da Cruz, em 1748, ficou registrada no livro Aureo Throno Episcopal, um perfil laudatório do bispo, escrito em tom de adulação por autor que depois se tornaria seu desafeto e com quem pelejaria na Justiça. Amigos, amigos, negócios à parte. Os dois festejos marcam momentos decisivos da história mineira. O Triunfo Eucarístico de 1733 é o auge; e a festa de 1748 o declínio do ciclo do ouro.
E nosso primeiro bispo gostava de ouro. E amealhou bastante em sua longa vida de 74 anos. Entre as formas de juntar fortuna estavam seus honorários na celebração de missas e outros ofícios religiosos, que eram cotados em valores bem acima do já inflacionado “mercado” da fé e da salvação da alma. Os ricos davam tudo pelo paraíso ou por uma simples indulgência. O bispo sabia disso e sabia que os novos ricos da colônia podiam pagar ainda mais que a tabela (Giffoni chega a fazer atualização do valor da celebração de uma missa solene na diocese de Mariana: R$ 1,4 mil). Além disso, Manoel da Cruz foi mestre em acender velas para o rei e o papa. Utilizava o púlpito para acusar os sonegadores do quinto do ouro, ameaçava os traidores, perseguia os sediciosos. Em contrapartida, tinha seus interesses respondidos pelo rei e pelo papa, no afastamento e prisão de inimigos, que não foram poucos.
Mineiros viciosos
Homem forte e centralizador, o bispo não gostava dos mineiros, razão talvez dos poucos estudos sobre sua vida, que exigiram de Luís Giffoni desdobrar sua pesquisa pelo Maranhão, Piauí, Bahia, Minas Gerais e Portugal (onde Manoel é reconhecido em sua cidade natal como um importante religioso que foi ser bispo no Brasil). Por aqui, nem mesmo nome de Rua em Mariana ele chegou a conquistar. Como registra o autor, no relatório decenal encaminhado ao papa Bento XIV em 1757, escreve Manoel da Cruz: “O território desta região aurífera sobrepuja, no entanto, as maiores cidades da orbe na torpeza diversificada dos vícios”. E chega a comparar o relevo das montanhas de Minas com a baixa moral de seus habitantes.
E ele devia saber do que estava falando, já que acusava nos mineiros o “atrativo para o mal, a saber, a extração do ouro”. Falar mal do povo para relevar os sentimentos dos poderosos foi uma das atitudes sempre presentes na vida do bispo. Era capaz de condenar suas “ovelhas” pelo pecado da carne, ao mesmo tempo em que louvava o rei de Portugal, conhecido como Freirático, por sua predileção pelas religiosas, com quem chegou a ter três filhos reconhecidos e que fizeram carreira na Igreja.
O livro registra as obras de Manoel da Cruz como criador de paróquias, igrejas, conventos, seminário e até mesmo da instalação do órgão Arp Schintger da Sé, ainda hoje um dos orgulhos da cidade. A importante música colonial mineira está em grande parte ligada a Mariana, que realizava concertos e ofícios que de alguma forma escapavam da censura episcopal. Como o atual Bento, agora XVI, temiam-se mudanças nos ritos, que podiam figurar “insólitos e desnecessários”.
Manoel da Cruz foi homem de seu tempo, mas muito de seu comportamento serve ainda hoje de guia para a psicopatologia do poder que ainda vige em terras brasileiras. Subserviente com os poderosos, arrogante com os fracos; vingativo na esfera privada e magnânimo nos sermões públicos; duro no combate à usura sem se sentir culpado com a riqueza pessoal; afável com os aduladores, mas capaz de despejar contra eles cargas de ódio em razão de negócios e interesses. Colecionou inimigos, fez uma rede de seguidores de sua pedagogia do medo.
O livro de Giffoni se divide em quatro capítulos, cada um marcado por um período da vida de Manoel da Cruz. No primeiro, recupera a vida do religioso em São Luís, de 1739 a 1747. O segundo trata da viagem pelos sertões do Maranhão, Piauí, Bahia e Minas Gerais, entre 1747 e 1748. No capítulo seguinte, a festa cheia de pompa e circunstância que marca a posse na Sé de Mariana é apresentada em seu fausto e excessos, bem como na análise da crônica laudatória de sua chegada ao Estado. O último capítulo trata dos anos de bispado em Mariana, de 1748 até a morte de dom frei Manoel da Cruz, em 1764.
O autor pontua o tempo todo sua condição de pesquisador iniciante, que quer ver seu estudo como ponto de partida para a recuperação da grande figura histórica do bispo. Nomeia suas fontes, discute com outros autores, sempre com cordialidade, como quem dialoga com o leitor. Diverge de algumas interpretações e apresenta com serenidade seus argumentos. É um método polido e honesto. Algumas vezes, no entanto, parece ter pudor em excesso para defender suas interpretações, que corta momentos deliciosos de quase cumplicidade com o leitor. Certamente, é cuidado de escritor que não se arroga a historiador e que tem o cuidado em não cometer julgamentos extemporâneos, como é comum em quem mergulha em documentos do passado sem o cuidado do método, da crítica das fontes e da teoria.
Giffoni tinha seu romance histórico na mão e generosamente entrega a tarefa ao leitor. Que cada um construa sua própria narrativa sobre o meritíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo Dom Frei Manoel da Cruz.
(Extraído do caderno Pensar do jornal “Estado de Minas”, de 31.05.2008).
O romancista Luís Giffoni escreve relato histórico sobre a vida de Frei Manoel da Cruz, primeiro bispo de Minas Gerais, português de nascimento que serviu ao poder de dom João V e às ordens da Igreja
O romancista Luís Giffoni tinha um personagem e tanto nas mãos. Ao pesquisar a vida de Dom Frei Manoel da Cruz, primeiro bispo de Minas, se deparou com um homem típico de seu tempo, mas capaz de levar às últimas conseqüências a dicotomia entre céu e inferno que marcou o século 18 brasileiro. No lugar da ficção, talvez por ser tão incrível a ponto de tornar a verdade ainda mais assombrosa, Giffoni escolheu escrever um relato histórico. Bom para o leitor. Com estilo distante do sotaque acadêmico, o escritor vai desvelando um homem com quem a história brasileira ainda precisa acertar suas contas.
O bispo que inaugura a diocese de Mariana, estabelecida em 1745, foi um homem de contradições poderosas. Se o barroco é considerado pelos filósofos como um estilo que funde lados díspares do homem e do mundo, Manoel da Cruz foi barroco até a raiz de seu temperamento e caráter. Português, chegou ao Brasil em 1739 por designação do rei de Portugal, dom João V, para ser o bispo do Maranhão, na cidade de São Luís. Não foi indicado ao acaso para Sé vacante. Era homem culto, diplomado em Coimbra, de origem nobre. E afeito aos negócios religiosos e palacianos.
Depois de oito anos no Maranhão, o bispo se dirige ao novo posto, a Sé de Mariana, criada pelo rei e referendada pelo papa Bento XIV. E vem com atraso, a ponto de receber um puxão de orelhas do rei, que decreta, curto e grosso, que “passasse logo à nova diocese a que fora promovido”. Além de demorar a cumprir a ordem, o bispo resolve percorrer os 4 mil quilômetros que separam o Maranhão de Minas a pé, atravessando sertão, caatinga e até ataques de índios. Adoeceu, sofreu naufrágio na travessia do São Francisco, passou por sangrias e outros tormentos. Tinha 60 anos – idade considerável para a época – e chega esgotado ao destino, precisando de semanas para se recuperar e tomar posse da função. Foram um ano e dois meses de “dilatada via” e “perigosa jornada”, como registraram as crônicas da época.
Não foi uma posse qualquer. Giffoni conta que, em matéria de pompa, só perdeu para o Triunfo Eucarístico, de 1733, que marcou a transferência do divino sacramento da igreja do Rosário para a do Pilar, em Ouro Preto. A solenidade de posse de dom frei Manoel da Cruz, em 1748, ficou registrada no livro Aureo Throno Episcopal, um perfil laudatório do bispo, escrito em tom de adulação por autor que depois se tornaria seu desafeto e com quem pelejaria na Justiça. Amigos, amigos, negócios à parte. Os dois festejos marcam momentos decisivos da história mineira. O Triunfo Eucarístico de 1733 é o auge; e a festa de 1748 o declínio do ciclo do ouro.
E nosso primeiro bispo gostava de ouro. E amealhou bastante em sua longa vida de 74 anos. Entre as formas de juntar fortuna estavam seus honorários na celebração de missas e outros ofícios religiosos, que eram cotados em valores bem acima do já inflacionado “mercado” da fé e da salvação da alma. Os ricos davam tudo pelo paraíso ou por uma simples indulgência. O bispo sabia disso e sabia que os novos ricos da colônia podiam pagar ainda mais que a tabela (Giffoni chega a fazer atualização do valor da celebração de uma missa solene na diocese de Mariana: R$ 1,4 mil). Além disso, Manoel da Cruz foi mestre em acender velas para o rei e o papa. Utilizava o púlpito para acusar os sonegadores do quinto do ouro, ameaçava os traidores, perseguia os sediciosos. Em contrapartida, tinha seus interesses respondidos pelo rei e pelo papa, no afastamento e prisão de inimigos, que não foram poucos.
Mineiros viciosos
Homem forte e centralizador, o bispo não gostava dos mineiros, razão talvez dos poucos estudos sobre sua vida, que exigiram de Luís Giffoni desdobrar sua pesquisa pelo Maranhão, Piauí, Bahia, Minas Gerais e Portugal (onde Manoel é reconhecido em sua cidade natal como um importante religioso que foi ser bispo no Brasil). Por aqui, nem mesmo nome de Rua em Mariana ele chegou a conquistar. Como registra o autor, no relatório decenal encaminhado ao papa Bento XIV em 1757, escreve Manoel da Cruz: “O território desta região aurífera sobrepuja, no entanto, as maiores cidades da orbe na torpeza diversificada dos vícios”. E chega a comparar o relevo das montanhas de Minas com a baixa moral de seus habitantes.
E ele devia saber do que estava falando, já que acusava nos mineiros o “atrativo para o mal, a saber, a extração do ouro”. Falar mal do povo para relevar os sentimentos dos poderosos foi uma das atitudes sempre presentes na vida do bispo. Era capaz de condenar suas “ovelhas” pelo pecado da carne, ao mesmo tempo em que louvava o rei de Portugal, conhecido como Freirático, por sua predileção pelas religiosas, com quem chegou a ter três filhos reconhecidos e que fizeram carreira na Igreja.
O livro registra as obras de Manoel da Cruz como criador de paróquias, igrejas, conventos, seminário e até mesmo da instalação do órgão Arp Schintger da Sé, ainda hoje um dos orgulhos da cidade. A importante música colonial mineira está em grande parte ligada a Mariana, que realizava concertos e ofícios que de alguma forma escapavam da censura episcopal. Como o atual Bento, agora XVI, temiam-se mudanças nos ritos, que podiam figurar “insólitos e desnecessários”.
Manoel da Cruz foi homem de seu tempo, mas muito de seu comportamento serve ainda hoje de guia para a psicopatologia do poder que ainda vige em terras brasileiras. Subserviente com os poderosos, arrogante com os fracos; vingativo na esfera privada e magnânimo nos sermões públicos; duro no combate à usura sem se sentir culpado com a riqueza pessoal; afável com os aduladores, mas capaz de despejar contra eles cargas de ódio em razão de negócios e interesses. Colecionou inimigos, fez uma rede de seguidores de sua pedagogia do medo.
O livro de Giffoni se divide em quatro capítulos, cada um marcado por um período da vida de Manoel da Cruz. No primeiro, recupera a vida do religioso em São Luís, de 1739 a 1747. O segundo trata da viagem pelos sertões do Maranhão, Piauí, Bahia e Minas Gerais, entre 1747 e 1748. No capítulo seguinte, a festa cheia de pompa e circunstância que marca a posse na Sé de Mariana é apresentada em seu fausto e excessos, bem como na análise da crônica laudatória de sua chegada ao Estado. O último capítulo trata dos anos de bispado em Mariana, de 1748 até a morte de dom frei Manoel da Cruz, em 1764.
O autor pontua o tempo todo sua condição de pesquisador iniciante, que quer ver seu estudo como ponto de partida para a recuperação da grande figura histórica do bispo. Nomeia suas fontes, discute com outros autores, sempre com cordialidade, como quem dialoga com o leitor. Diverge de algumas interpretações e apresenta com serenidade seus argumentos. É um método polido e honesto. Algumas vezes, no entanto, parece ter pudor em excesso para defender suas interpretações, que corta momentos deliciosos de quase cumplicidade com o leitor. Certamente, é cuidado de escritor que não se arroga a historiador e que tem o cuidado em não cometer julgamentos extemporâneos, como é comum em quem mergulha em documentos do passado sem o cuidado do método, da crítica das fontes e da teoria.
Giffoni tinha seu romance histórico na mão e generosamente entrega a tarefa ao leitor. Que cada um construa sua própria narrativa sobre o meritíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo Dom Frei Manoel da Cruz.
(Extraído do caderno Pensar do jornal “Estado de Minas”, de 31.05.2008).
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