O drama dos pais ao descobrir o conflito de identidade de gênero de suas crianças é um turbilhão emocional que passa pelo susto e pelo medo e só sereniza com tolerância e respeito
Giulia Vidale
(...) Os transgêneros fazem parte do cotidiano brasileiro, e já não se pode fingir que não existem sob o pretexto de que não combinam com o padrão tradicional. E são muitos – 0,5% da população. No Brasil, isso corresponde a cerca de 1 milhão de pessoas. No mundo, são 35 milhões, o que vale à população de um país como o Canadá. A dificuldade de aceitação , que no passado recente significava condenação ao eterno preconceito, somente agora começa a ser diluída. A condição tecnicamente definida como “disforia de gênero”. Trata-se do desconforto, do descompasso, permanente e completo, entre o sexo biológico e a identidade de gênero. Na idade adulta, pode resultar em isolamento social. Na infância, pode ser ainda mais dramático, se não for bem compreendido.
VEJA acompanhou durante um mês o cotidiano de famílias em que há meninas que não se sentem adequadas com o corpo feminino e meninos que não se reconhecem no corpo masculino – alguns são realmente pequenos, de apenas 6 anos. A reportagem da revista ouviu também pais de transgêneros já adultos. Da conversa com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e educadores, brota um retrato que vai do medo inicial, do susto com a novidade até, nos casos felizes, ao respeito e carinho, numa estrada sinuosa de emoções infindáveis. Há mais cuidado hoje – e a novela é constatação desse avanço -, mas os problemas de relacionamento são imensos. “Por mais que o assunto esteja nas ruas, é ainda complicado para uma mãe e um pai aceitar a situação de seus filhos na intimidade”, diz a psicanalista Edith Modesto, fundadora do GPH – Grupo de Pais de LGBTI(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero e Intersexuais; os intersexuais são aqueles que nasceram com alguma variação de anatomia do aparelho reprodutor. O apoio da família é o ponto crucial.
(...) Para frear o sofrimento, e para iluminar o assunto, a Sociedade Brasileira de Pediatria lanou recentemente um manual sobre atendimento e acompanhamento de crianças e adolescentes com sinais de transtorno de gênero. Os sinais podem ser a persistência em vestir-se com roupas do sexo oposto, o forte desgosto pela própria anatomia sexual, a preferência por brincar com pares do sexo oposto – atitudes como essas devem permanecer por pelo menos seis meses, de maneira a configurar uma alteração real, que precise ser investigada minuciosamente. Ao redor dos 2, 3 anos, uma criança já se identifica como menino ou menina de forma mais definida – e, no caso de transgênero, a inquietação, a sensação de ser uma peça fora do lugar, pode brotar bem cedo, portanto. É doloroso para as crianças, evidentemente, mas também para os pais.
(...) A questão das intervenções de mudança de sexo é ainda mais complicado. De acordo com a legislação brasileira, o uso de hormônios do sexo oposto só é autorizado depois dos 18 anos. Antes dessa idade, permite-se apenas o bloqueio do hormônio natural do gênero, com o objetivo de evitar que a criança entre na puberdade e desenvolva características associadas ao sexo de nascimento, sempre com a autorização dos pais. Nas meninas, exemplos disso seriam a menstruação e o desenvolvimento das mamas. Nos homens, o surgimento de pelos, do pomo de adão e alterações na voz. Somente depois dos 21 anos são autorizadas a extração dos órgãos e a construção de genitais. Desde 2008 o Sistema Único de Saúde oferece cirurgias de mudança de sexo e terapia hormonal. De lá para cá foram realizados 400 procedimentos hospitalares, em cinco centros autorizados, e 1241 procedimentos ambulatoriais.
(...) Uma criança transgênero vai construindo sua identidade de gênero, mas não se trata de um processo abrupto. Nem mesmo irreversível. O problema é querer solidificar uma identidade na criança antes da hora, diz a psicóloga Rosely Sayão, colunista de VEJA. Cerca de 2% mudam de ideia e desejam voltar ao gênero de nascimento. A dúvida é mais comum na infância. Os médios interrompem o bloqueio hormonal, se ele já estiver sendo praticado, e o organismo retoma as características iniciais. No entanto, no caso de arrependimento aparecer na idade adulta, e a cirurgia de mudança de sexo já tiver ocorrido, dá-se um colossal impasse. Não há reversão saudável para a maioria das operações.
(...) Até o início dos anos 2000, a transgeneridade era tratada como doença pela maioria dos profissionais. Apenas em 2013 a Sociedade Americana de Psiquiatria passou a considerá-la uma condição, e não mais uma patologia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já estuda tirar a transgeneridade da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID), também dando um passo decisivo para que o tema deixe de ser conceituado como uma patologia.
(...) Um em cada 15000 meninos faz a transição para menina. Uma em cada 40000 meninas agora é menino. Acompanhamentos psicológicos indicam ser mais fácil para o pais aceitar a transação do feminino para o masculino.
A ciência ainda busca entender o mecanismo que encaminha o desencontro entre mente e corpo. A explicação fisiológica mais aceita envolve alterações cerebrais e hormonais. Haveria um descompasso na produção de hormônios masculinos que circulam no corpo da mãe entre a décima semana de gestação, quando se formam os órgãos genitais, e a vigésima, quando se desenvolve a região cerebral responsável pela identidade de gênero. “Isso abriria brecha para a formação de um cérebro masculino em um corpo feminino, e vice versa”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh.
*Fonte: revista VEJA – edição 2552 – 18.10.2017.
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