Waldemar de Moura Santos*
Corria o ano de 1889 e nos falam as crônicas da época que a Semana Santa devia ser completada com as procissões de Depósito e do Encontro, que não se realizavam por falta da imagem do Senhor dos Passos, que fora encomendada e não chegariam a tempo para concretização daquelas públicas cerimônias tão caras aos marianenses.
Surgiu, pois, um grande problema, em parte, de difícil solução. Reuniu-se a Irmandade dos Passos sob a presidência do Comendador Pancrácio Mamão, composta de 188 membros ativos com seus balandraus roxos e de seda caríssima. A Mesa Administrativa, que tinha a responsabilidade de promover e executar o programa da Semana Santa, estudou e discutiu o assunto acaloradamente sem, entretanto, chegar a uma conclusão satisfatória.
- Como há de ser: teremos ou não a Procissão do Encontro? Como a faremos sem a imagem principal? Houve propostas e sugestões sobre a confecção de uma imagem de cera ou de papelão e mesmo de madeira (cabeças e braços), sendo as partes internas em armação coberta de pano, como o é a maioria de nossas imagens vestidas. Numa dessas armações de santos encontramos gravado o ano acima aludido.
Um velho Irmão, depois de muita discussão, conservando-se silencioso, pediu, afinal, a palavra e propôs calma e pausadamente. O caso é muito simples. Vamos escolher um companheiro nosso aqui presente para servir de Senhor dos Passos. Eu o indico na pessoa do senhor Chico Rolão, homem que tem a fisionomia sulcada por sofrimentos, portanto exata de Cristo martirizado. Ele representará bem o papel e penso que não fugirá ao nosso apelo nesta suprema dificuldade, mormente em se tratando de um derradeiro recurso para contornar o problema com vistas à realização da Procissão do Encontro, que vai marcar o maior sucesso religioso nesta cidade.
Muito bem, aplaudiram todos a proposta do melífluo e astuto Irmão Manoel Zagaia. O Provedor, em seguida, com aprovação unânime, designa solenemente o Chico Rolão para servir de Senhor dos Passos. O Irmão escolhido levanta-se, boceja, lança um escarro violento para o lado, com um sorriso mostrando uns velhos dentes numa dentadura falha e imunda, para exclamar.
“Eu aceito comovido a incumbência, mas somente com uma ressalva: nada de cruz e coroa de espinho”.
Mas senhor Rolão, pondera o Provedor faminto dos Anjos, o senhor já viu algum dia Senhor dos Passos sem cruz e sem coroa? A não ser assim, nada feito. Mas pode aceitar que é somente uma representação. A cruz será de sarrafos e coberta de papel escuro e a coroa de espinho é simulada em lata e as extremidades que lhe penetram na cabeça serão ajustadas numa cabeleira de algodão. Nada lhe magoará o físico a não ser a paciência da posição para carregar a cruz e o devido equilíbrio no andor.
- Está bem, nessas condições eu aceito.
Com um voto de louvor ao assentimento do velho Irmão, que assim procedendo, solucionou o problema, poucos dias depois realizou-se a Procissão do Encontro.
Na porta da igreja do Rosário, iniciou-se a cerimônia litúrgica com o sermão do Pretório pregado pelo erudito cônego Calazans. Terminado, movimentou-se o cortejo, descendo a rua em cada Passo até atingir o Largo de São Francisco, onde realizaria o encontro de Jesus com Maria. Aproximando-se o andor da praça, literalmente cheia, a um sinal dado pelo mestre de cerimônias, estaca de súbito a marcha da procissão, enquanto o seminarista do alto do púlpito com o sermão decorado, pateticamente, brada: Parai-vos, desgraçado! O Chico Rolão não se conteve. Acenando para o moço pregador vociferou: esta não! Um frêmito de inquietação invadiu toda a multidão que notou algo sobrenatural, partido do andor e alguém comentou: Senhor dos Passos está falando. A procissão prosseguiu em direção à rua Nova até atingir a Praça da Independência, hoje Gomes Freire, onde a aguardava, além de grande multidão, uma numerosa turma de estudantes de Ouro Preto que ali postara para observar a passagem da procissão. Já em plena praça cercada de magnólias, um dos estudantes gritou;
- Ave César. Cai fora, Chico Rolão. E a turma, em vaia intensa, repetia: Cai fora, cachaceiro, tocador de matraca, palhaço de circo, sacrílego de uma figa. Indignado, Chico Rolão, perdendo a noção do que representava, levanta-se furioso do andor e berra: Bandidos, cretinos, cachorros, polícia para essa corja de imbecis.
Nesse instante, o braço da cruz esbarra num galho de magnólia e toca numa caixa de marimbondos que cai em cima de sua cabeça. Ficou alucinado e deformado pelas picadas dos insetos. Chegando à Sé Catedral, Chico Rolão disse ao Arcipreste: cumpri o meu dever, padeci rudemente, contudo, a procissão não falhou. Ela será para o futuro uma das glórias do povo de Mariana. Mas representei, senhores, um Cristo diferente. E é bom frisar para a história o registrar. Nosso Deus sofreu todos os martírios, menos picada de maribondos e insultos de estudantes!
* (Extraído do livro “Lendas Marianenses”, editado pela Imprensa Oficial em 1966, de autoria do jornalista e escritor Waldemar de Moura Santos, um dos fundadores da primeira Casa de Cultura em Minas Gerais, falecido em 30.12.1986).
Corria o ano de 1889 e nos falam as crônicas da época que a Semana Santa devia ser completada com as procissões de Depósito e do Encontro, que não se realizavam por falta da imagem do Senhor dos Passos, que fora encomendada e não chegariam a tempo para concretização daquelas públicas cerimônias tão caras aos marianenses.
Surgiu, pois, um grande problema, em parte, de difícil solução. Reuniu-se a Irmandade dos Passos sob a presidência do Comendador Pancrácio Mamão, composta de 188 membros ativos com seus balandraus roxos e de seda caríssima. A Mesa Administrativa, que tinha a responsabilidade de promover e executar o programa da Semana Santa, estudou e discutiu o assunto acaloradamente sem, entretanto, chegar a uma conclusão satisfatória.
- Como há de ser: teremos ou não a Procissão do Encontro? Como a faremos sem a imagem principal? Houve propostas e sugestões sobre a confecção de uma imagem de cera ou de papelão e mesmo de madeira (cabeças e braços), sendo as partes internas em armação coberta de pano, como o é a maioria de nossas imagens vestidas. Numa dessas armações de santos encontramos gravado o ano acima aludido.
Um velho Irmão, depois de muita discussão, conservando-se silencioso, pediu, afinal, a palavra e propôs calma e pausadamente. O caso é muito simples. Vamos escolher um companheiro nosso aqui presente para servir de Senhor dos Passos. Eu o indico na pessoa do senhor Chico Rolão, homem que tem a fisionomia sulcada por sofrimentos, portanto exata de Cristo martirizado. Ele representará bem o papel e penso que não fugirá ao nosso apelo nesta suprema dificuldade, mormente em se tratando de um derradeiro recurso para contornar o problema com vistas à realização da Procissão do Encontro, que vai marcar o maior sucesso religioso nesta cidade.
Muito bem, aplaudiram todos a proposta do melífluo e astuto Irmão Manoel Zagaia. O Provedor, em seguida, com aprovação unânime, designa solenemente o Chico Rolão para servir de Senhor dos Passos. O Irmão escolhido levanta-se, boceja, lança um escarro violento para o lado, com um sorriso mostrando uns velhos dentes numa dentadura falha e imunda, para exclamar.
“Eu aceito comovido a incumbência, mas somente com uma ressalva: nada de cruz e coroa de espinho”.
Mas senhor Rolão, pondera o Provedor faminto dos Anjos, o senhor já viu algum dia Senhor dos Passos sem cruz e sem coroa? A não ser assim, nada feito. Mas pode aceitar que é somente uma representação. A cruz será de sarrafos e coberta de papel escuro e a coroa de espinho é simulada em lata e as extremidades que lhe penetram na cabeça serão ajustadas numa cabeleira de algodão. Nada lhe magoará o físico a não ser a paciência da posição para carregar a cruz e o devido equilíbrio no andor.
- Está bem, nessas condições eu aceito.
Com um voto de louvor ao assentimento do velho Irmão, que assim procedendo, solucionou o problema, poucos dias depois realizou-se a Procissão do Encontro.
Na porta da igreja do Rosário, iniciou-se a cerimônia litúrgica com o sermão do Pretório pregado pelo erudito cônego Calazans. Terminado, movimentou-se o cortejo, descendo a rua em cada Passo até atingir o Largo de São Francisco, onde realizaria o encontro de Jesus com Maria. Aproximando-se o andor da praça, literalmente cheia, a um sinal dado pelo mestre de cerimônias, estaca de súbito a marcha da procissão, enquanto o seminarista do alto do púlpito com o sermão decorado, pateticamente, brada: Parai-vos, desgraçado! O Chico Rolão não se conteve. Acenando para o moço pregador vociferou: esta não! Um frêmito de inquietação invadiu toda a multidão que notou algo sobrenatural, partido do andor e alguém comentou: Senhor dos Passos está falando. A procissão prosseguiu em direção à rua Nova até atingir a Praça da Independência, hoje Gomes Freire, onde a aguardava, além de grande multidão, uma numerosa turma de estudantes de Ouro Preto que ali postara para observar a passagem da procissão. Já em plena praça cercada de magnólias, um dos estudantes gritou;
- Ave César. Cai fora, Chico Rolão. E a turma, em vaia intensa, repetia: Cai fora, cachaceiro, tocador de matraca, palhaço de circo, sacrílego de uma figa. Indignado, Chico Rolão, perdendo a noção do que representava, levanta-se furioso do andor e berra: Bandidos, cretinos, cachorros, polícia para essa corja de imbecis.
Nesse instante, o braço da cruz esbarra num galho de magnólia e toca numa caixa de marimbondos que cai em cima de sua cabeça. Ficou alucinado e deformado pelas picadas dos insetos. Chegando à Sé Catedral, Chico Rolão disse ao Arcipreste: cumpri o meu dever, padeci rudemente, contudo, a procissão não falhou. Ela será para o futuro uma das glórias do povo de Mariana. Mas representei, senhores, um Cristo diferente. E é bom frisar para a história o registrar. Nosso Deus sofreu todos os martírios, menos picada de maribondos e insultos de estudantes!
* (Extraído do livro “Lendas Marianenses”, editado pela Imprensa Oficial em 1966, de autoria do jornalista e escritor Waldemar de Moura Santos, um dos fundadores da primeira Casa de Cultura em Minas Gerais, falecido em 30.12.1986).
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