Sebastião Nunes
De vez em quando saio vagando feito cigano e atravesso, como se palmilhasse o deserto, pequenas cidades do interior. Passo pela pracinha da igreja – e lá está o coreto. Passo pelo supermercado – e lá estão as mesmas mulheres peladas na parede vendendo cerveja.
Passo pela rua principal – e lá vejo as lojinhas de eletrodomésticos, de tecidos, de etc. Então a cidade vai ficando vazia, chego ao subúrbio de classe média, depois ao subúrbio pobre, finalmente ao subúrbio miserável – e estou de novo na estrada, pronto para outra experiência de cidade pequena. Variantes?
Quase nenhuma. Em noite de sexta ou de sábado a pracinha está cheia de gente, os bares entupidos da eterna mocidade envelhecendo burramente nas calçadas, os carros com a traseira aberta berrando estupidez. A paquera é quase a mesma de quando eu era garoto.
Os mais espertos (ou mais ricos ou mais bonitos) ganham as garotas mais espertas (ou mais ricas ou mais bonitas). Os mais bobos ficam chupando o dedo. Isso desde que o mundo existe.
Em um ou dois restaurantes, pois há sempre um ou dois restaurantes, garçons solícitos atendem fregueses fingindo de chiques, sob decorações horrorosas. Costuma ter uma TV ligada, enorme, exibindo uma besteira qualquer.
Ou um cara armado de microfone, tentando imitar alguém mais conhecido que ele, o que não é difícil. Difícil é agüentar aquilo toda santa noite de sábado. Ou de sexta. Fazer o quê?
Assim são as cidades brasileiras, as cinco mil e tantas que oscilam de dez a cem mil habitantes, com seus artistas, seus políticos, seus líderes, suas janelas e seus heróis.
De vez em quando saio vagando feito cigano e atravesso, como se palmilhasse o deserto, pequenas cidades do interior. Passo pela pracinha da igreja – e lá está o coreto. Passo pelo supermercado – e lá estão as mesmas mulheres peladas na parede vendendo cerveja.
Passo pela rua principal – e lá vejo as lojinhas de eletrodomésticos, de tecidos, de etc. Então a cidade vai ficando vazia, chego ao subúrbio de classe média, depois ao subúrbio pobre, finalmente ao subúrbio miserável – e estou de novo na estrada, pronto para outra experiência de cidade pequena. Variantes?
Quase nenhuma. Em noite de sexta ou de sábado a pracinha está cheia de gente, os bares entupidos da eterna mocidade envelhecendo burramente nas calçadas, os carros com a traseira aberta berrando estupidez. A paquera é quase a mesma de quando eu era garoto.
Os mais espertos (ou mais ricos ou mais bonitos) ganham as garotas mais espertas (ou mais ricas ou mais bonitas). Os mais bobos ficam chupando o dedo. Isso desde que o mundo existe.
Em um ou dois restaurantes, pois há sempre um ou dois restaurantes, garçons solícitos atendem fregueses fingindo de chiques, sob decorações horrorosas. Costuma ter uma TV ligada, enorme, exibindo uma besteira qualquer.
Ou um cara armado de microfone, tentando imitar alguém mais conhecido que ele, o que não é difícil. Difícil é agüentar aquilo toda santa noite de sábado. Ou de sexta. Fazer o quê?
Assim são as cidades brasileiras, as cinco mil e tantas que oscilam de dez a cem mil habitantes, com seus artistas, seus políticos, seus líderes, suas janelas e seus heróis.
TODA CIDADE TEM UM PREFEITO
Seu pai também foi prefeito, ou seu tio, ou seu cunhado. A família tem vocação política, ou seja: são aves de rapina. Risonhos, batem nas costas, soletram nomes, contam piadas, jogam conversa fora. Plantam verde pra colher maduro. Costumam ser médicos, fazendeiros, comerciantes. Geralmente analfabetos, aprendem diante da TV o que todos os conterrâneos aprendem, de modo que assunto não falta. Bons de papo, transmitem sua falta de cultura em praça pública, entre dezenas de outros incultos. Nasceram parasitas e vão morrer parasitas. O filho ou a filha, o neto ou a neta – algum deles herdará a vocação e o poder.
Seu pai também foi prefeito, ou seu tio, ou seu cunhado. A família tem vocação política, ou seja: são aves de rapina. Risonhos, batem nas costas, soletram nomes, contam piadas, jogam conversa fora. Plantam verde pra colher maduro. Costumam ser médicos, fazendeiros, comerciantes. Geralmente analfabetos, aprendem diante da TV o que todos os conterrâneos aprendem, de modo que assunto não falta. Bons de papo, transmitem sua falta de cultura em praça pública, entre dezenas de outros incultos. Nasceram parasitas e vão morrer parasitas. O filho ou a filha, o neto ou a neta – algum deles herdará a vocação e o poder.
TODA CIDADE TEM DOIS GALÃS
Bonitões, imitam os galãs de TV da novela da moda. Não perseguem as garotas, elas é que os perseguem. Disputam entre si quem ganha mais garotas em menos tempo. Mas só valem as discretas. A cada conquista, furam com alfinete um buraquinho na ponta do pinto, de onde brota gloriosa gota de sangue. Quando casam, depois de gordos e saciados, vigiam as filhas como barões medievais. Sabem, pela longa experiência, que homem não presta. De garanhões tornam-se afinal caretões. E olham carrancudos para os pretendentes à virgindade das filhas, frutos colhidos há séculos por primos e vizinhos em brincadeiras inocentes.
Bonitões, imitam os galãs de TV da novela da moda. Não perseguem as garotas, elas é que os perseguem. Disputam entre si quem ganha mais garotas em menos tempo. Mas só valem as discretas. A cada conquista, furam com alfinete um buraquinho na ponta do pinto, de onde brota gloriosa gota de sangue. Quando casam, depois de gordos e saciados, vigiam as filhas como barões medievais. Sabem, pela longa experiência, que homem não presta. De garanhões tornam-se afinal caretões. E olham carrancudos para os pretendentes à virgindade das filhas, frutos colhidos há séculos por primos e vizinhos em brincadeiras inocentes.
TODA CIDADE TEM TRÊS MODELOS
Freqüentam academias, empinam a bunda, exibem o umbigo. Metade do dia, estão diante do espelho, escova que escova, pinta que pinta, lustra que lustra. O resto do tempo por aqui e por ali, qualquer lugar cheio de homem é um prato cheio. Lêem revistas de gente famosa e burra, de gente da moda e ignorante, de gente da mídia e estúpida. Nunca desconfiaram que tudo aquilo é pago com sangue, suor e lágrimas, quando não com chantagem, baixaria, grossura, muito sexo – e bota nisso coisas piores, ou melhores. Quando passam dos trinta casam com quem estiver disponível. Fazem questão de levar as filhas às festas: quem sabe ainda faturam algum carente descuidado?
Freqüentam academias, empinam a bunda, exibem o umbigo. Metade do dia, estão diante do espelho, escova que escova, pinta que pinta, lustra que lustra. O resto do tempo por aqui e por ali, qualquer lugar cheio de homem é um prato cheio. Lêem revistas de gente famosa e burra, de gente da moda e ignorante, de gente da mídia e estúpida. Nunca desconfiaram que tudo aquilo é pago com sangue, suor e lágrimas, quando não com chantagem, baixaria, grossura, muito sexo – e bota nisso coisas piores, ou melhores. Quando passam dos trinta casam com quem estiver disponível. Fazem questão de levar as filhas às festas: quem sabe ainda faturam algum carente descuidado?
TODA CIDADE TEM QUATRO DOIDOS
Para todos os gostos. Tem o que só aceita de cinco reais pra cima e está quase rico apesar de esmolambado. Tem o que, pelado, lava a roupa em qualquer bica. O que dorme nos bancos da praça e come com os cachorros. E tem a grávida de todo ano, amante ocasional dos rapazes bêbados que, alta madrugada, sem terem faturado coisa alguma, admitem que tudo é lucro, fecham os olhos à fedentina e partem pro rela-rela.
Para todos os gostos. Tem o que só aceita de cinco reais pra cima e está quase rico apesar de esmolambado. Tem o que, pelado, lava a roupa em qualquer bica. O que dorme nos bancos da praça e come com os cachorros. E tem a grávida de todo ano, amante ocasional dos rapazes bêbados que, alta madrugada, sem terem faturado coisa alguma, admitem que tudo é lucro, fecham os olhos à fedentina e partem pro rela-rela.
TODA CIDADE TEM CINCO INTELECTUAIS
Decoraram os pronomes e guardaram dois ou três ditados em latim, quatro citações em francês, meia dúzias de frases em inglês. Publicaram artigos eruditos no jornal da cidade e, se a população é maiorzinha, fundaram uma academia de letras, com 40 imortais, imitando a municipalista que imita a estadual que imita a nacional que imitou a francesa. Nos dias de hoje, como ficou fácil e barato, a metade deles publicou livro de contos, crônicas, poemas e causos em que recebeu elogios do deputado regional. Uma vez por ano fazem viagem cultural. Quando de família rica, vão à Disneylândia. Se modestos, uma praia na Bahia, que combine peixe frito com pescadores primitivos. Adoram gente primitiva! Ah, que bom se todos fossem primitivos! Constituem, pela vasta cultura e aguda intuição, as reservas intelectuais das quais os prefeitos se servem para preencher as vagas das secretarias de cultura, educação e turismo. Com eles, brilhantes reservas de sabedoria, a cidade está otimamente servida e progride um ano em um século. Ou seis meses em dois séculos.
Decoraram os pronomes e guardaram dois ou três ditados em latim, quatro citações em francês, meia dúzias de frases em inglês. Publicaram artigos eruditos no jornal da cidade e, se a população é maiorzinha, fundaram uma academia de letras, com 40 imortais, imitando a municipalista que imita a estadual que imita a nacional que imitou a francesa. Nos dias de hoje, como ficou fácil e barato, a metade deles publicou livro de contos, crônicas, poemas e causos em que recebeu elogios do deputado regional. Uma vez por ano fazem viagem cultural. Quando de família rica, vão à Disneylândia. Se modestos, uma praia na Bahia, que combine peixe frito com pescadores primitivos. Adoram gente primitiva! Ah, que bom se todos fossem primitivos! Constituem, pela vasta cultura e aguda intuição, as reservas intelectuais das quais os prefeitos se servem para preencher as vagas das secretarias de cultura, educação e turismo. Com eles, brilhantes reservas de sabedoria, a cidade está otimamente servida e progride um ano em um século. Ou seis meses em dois séculos.
TODA CIDADE TEM UM CEMITÉRIO
As mais antigas têm cemitérios bonitos, cheios de anjos, mármore, túmulos enfeitados. Nas modernas, onde o progresso salta aos olhos do visitante desprevenido, tudo é concreto, inclusive os defuntos, que nunca mais fedem depois de concretados. Ou concretizados, tanto faz. Defunto fedorento, cruz e coroa é coisa de roça. Cidade progressista exige concreto nas ruas e, como diria algum poeta, nas almas. Principalmente nas almas, que também não fedem.
As mais antigas têm cemitérios bonitos, cheios de anjos, mármore, túmulos enfeitados. Nas modernas, onde o progresso salta aos olhos do visitante desprevenido, tudo é concreto, inclusive os defuntos, que nunca mais fedem depois de concretados. Ou concretizados, tanto faz. Defunto fedorento, cruz e coroa é coisa de roça. Cidade progressista exige concreto nas ruas e, como diria algum poeta, nas almas. Principalmente nas almas, que também não fedem.
TODA CIDADE TEM MIL JANELAS
Em cada janela dois cotovelos seguram um queixo. O queixo é virado pra cá e pra lá, de acordo com a necessidade dos olhos. Nada escapa aos olhos de água. Saiu água? Não é água, é águia. Aquele bicho grande de bico recurvo, que voa muito alto. Em cima do queixo um cérebro de água – água, não, águia – armazena os assuntos da semana
Em cada janela dois cotovelos seguram um queixo. O queixo é virado pra cá e pra lá, de acordo com a necessidade dos olhos. Nada escapa aos olhos de água. Saiu água? Não é água, é águia. Aquele bicho grande de bico recurvo, que voa muito alto. Em cima do queixo um cérebro de água – água, não, águia – armazena os assuntos da semana
*Extraído do jornal "O Tempo", de 26.11.2005.
Meu comentário: qualquer semelhança com Mariana de ontem e de hoje é mera coincidência...
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