Pedido de Perdão
Décadas depois de furtar cruz de coroa de São Luís Rei de França da igreja de Mariana, desconhecido entrega relíquia à irmandade e pede desculpas pelo ato de vandalismo.
Mariana – Uma carta anônima, o pedido de perdão e o arrependimento. Décadas depois de furtar parte de uma peça sacra da Igreja de São Francisco de Assis, no Centro Histórico da cidade, a 115 quilômetros de Belo Horizonte, uma pessoa não identificada faz a devolução, pelo correio, e surpreende os integrantes da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, à qual pertence o templo barroco construído entre 1762 e 1794. A caixa contendo a correspondência e o objeto – a cruz sobre a coroa de São Luís Rei de França, imagem do século 18 – foi postada no Rio de Janeiro (RJ) e endereçada ao ex-presidente da irmandade Antônio Pacheco Filho, de 79 anos. “Faço parte da ordem desde 1º de janeiro de 1950 e nunca soube da existência dessa cruz, que é de madeira com douramento e, ao que tudo indica, foi serrada para ser retirada. Deve ter sido levada na década de 1940, daí nunca termos dado falta”, acredita.
No pacote entregue há duas semanas na casa do ex-presidente da irmandade, está escrito, no lugar do remetente, o seu próprio nome (Antônio Filho), sem a palavra Pacheco. Além disso, há um endereço – Rua Barata Ribeiro, 500, Rio de Janeiro – que, conforme foi verificado, não existe. “Certamente, para impedir a sua identificação, a pessoa mandou a correspondência simples, sem aviso de recebimento”, disse. De posse da cruz, de cerca de 20 cm de altura, o assessor comunicou o fato ao presidente da irmandade, Nelson Vieira de Souza Filho, que tratou logo de reincorporá-la à imagem do santo franciscano, de 1,37m de altura, autoria não identificada e origem mineira, que fica no altar do lado direito da nave.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a igreja de São Francisco de Assis, na Praça Minas Gerais, forma, com a dedicada a Nossa Senhora do Carmo, um dos cartões-postais mais belos e conhecidos do estado. Segunda igreja mais visitada da cidade, atrás apenas da Catedral da Sé, ela guarda pinturas de Mestre Ataíde (1762-1830) e obras atribuídas a Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814).
Em 1989, o Iphan fez o inventário das peças, o qual foi entregue à Polícia Federal, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG) e Arquidiocese de Mariana. “No documento não está registrada a cruz”, diz Antônio. Ele conta que, antes, a coroa ficava aos pés da imagem, o que pode ter facilitado o furto: “Trata-se de um santo franciscano que pregou a caridade, então não achavam certo vê-lo coroado. Só muito tempo depois é que a imagem foi para a cabeça”. Mesmo assim, o responsável pelo ato deve ter agido em surdina e se esforçado muito, já que a imagem fica a cerca de seis metros do chão e não tem nenhum apoio próximo.
Ocupando metade de uma folha de papel ofício e digitado no computador, o texto, que pode ser de um homem ou de uma mulher, traz o mea-culpa e revelações: “Quero pedir perdão ao povo de Mariana e a todos os fiéis que frequentam a Igreja de São Francisco por este ato de vandalismo que cometi há muitos anos. Não tive coragem de devolvê-la, quando aí estive em julho. Esta cruz pertence à coroa da imagem de São Luís Rei de França, que fica no altar direito de quem entra. Espero que, algum dia, quando retornar a Mariana, vê-la no lugar a qual ela pertence”. Cuidadoso, o remetente embalou a peça antes de colocá-la na caixa.
CULPA Para o presidente da Irmandade da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, a misteriosa chegada do objeto sacro é motivo de alegria. Já o vice, Ladim Gamarano, acredita que pode ter ocorrido algum problema sério com o remetente, que, cheio de arrependimento, resolveu se penitenciar e devolver a cruz ao seu dono, temendo “receber, de volta, o mal que fez”.
O certo mesmo, avalia, é que, durante tanto tempo, moradores de Mariana e visitantes ficaram privados de ver a imagem na totalidade, conforme foi esculpida em madeira pelo seu criador. Os integrantes da ordem acreditam que a restituição da cruz vai dar um toque especial às festividades de São Francisco de Assis, que têm o seu ponto alto no domingo, com missa às 17h e às 19h (solene).
E, diante desta carta, o responsável pelo ato de vandalismo e furto merece perdão? Celebrante durante muitos anos de missas na Igreja de São Francisco de Assis e reitor da Arquiconfraria de São Francisco dos Cordões e do Santuário de Nossa Senhora do Carmo, o cônego Paulo Dilascio, de 80, responde “sim”. “A pessoa se mostra arrependida, pediu perdão, então pode ser perdoado de forma extra confissão. A sua atitude, ao devolver a peça, demonstra maturidade, trata-se de um gesto muito bonito”, acredita o cônego, que também nunca ouviu falar sobre a existência, nessa imagem específica, do complemento da coroa.
Ex-presidente da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Antônio Pacheco Filho integra irmandade desde 1950 e nunca soube da existência do objeto roubado.
*Fonte: jornal “Estado de Minas” – Caderno “Gerais”, de 06.10.2009.
Foto: Beto Magalhães/EM/D.A.Press.
Décadas depois de furtar cruz de coroa de São Luís Rei de França da igreja de Mariana, desconhecido entrega relíquia à irmandade e pede desculpas pelo ato de vandalismo.
Mariana – Uma carta anônima, o pedido de perdão e o arrependimento. Décadas depois de furtar parte de uma peça sacra da Igreja de São Francisco de Assis, no Centro Histórico da cidade, a 115 quilômetros de Belo Horizonte, uma pessoa não identificada faz a devolução, pelo correio, e surpreende os integrantes da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, à qual pertence o templo barroco construído entre 1762 e 1794. A caixa contendo a correspondência e o objeto – a cruz sobre a coroa de São Luís Rei de França, imagem do século 18 – foi postada no Rio de Janeiro (RJ) e endereçada ao ex-presidente da irmandade Antônio Pacheco Filho, de 79 anos. “Faço parte da ordem desde 1º de janeiro de 1950 e nunca soube da existência dessa cruz, que é de madeira com douramento e, ao que tudo indica, foi serrada para ser retirada. Deve ter sido levada na década de 1940, daí nunca termos dado falta”, acredita.
No pacote entregue há duas semanas na casa do ex-presidente da irmandade, está escrito, no lugar do remetente, o seu próprio nome (Antônio Filho), sem a palavra Pacheco. Além disso, há um endereço – Rua Barata Ribeiro, 500, Rio de Janeiro – que, conforme foi verificado, não existe. “Certamente, para impedir a sua identificação, a pessoa mandou a correspondência simples, sem aviso de recebimento”, disse. De posse da cruz, de cerca de 20 cm de altura, o assessor comunicou o fato ao presidente da irmandade, Nelson Vieira de Souza Filho, que tratou logo de reincorporá-la à imagem do santo franciscano, de 1,37m de altura, autoria não identificada e origem mineira, que fica no altar do lado direito da nave.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a igreja de São Francisco de Assis, na Praça Minas Gerais, forma, com a dedicada a Nossa Senhora do Carmo, um dos cartões-postais mais belos e conhecidos do estado. Segunda igreja mais visitada da cidade, atrás apenas da Catedral da Sé, ela guarda pinturas de Mestre Ataíde (1762-1830) e obras atribuídas a Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814).
Em 1989, o Iphan fez o inventário das peças, o qual foi entregue à Polícia Federal, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG) e Arquidiocese de Mariana. “No documento não está registrada a cruz”, diz Antônio. Ele conta que, antes, a coroa ficava aos pés da imagem, o que pode ter facilitado o furto: “Trata-se de um santo franciscano que pregou a caridade, então não achavam certo vê-lo coroado. Só muito tempo depois é que a imagem foi para a cabeça”. Mesmo assim, o responsável pelo ato deve ter agido em surdina e se esforçado muito, já que a imagem fica a cerca de seis metros do chão e não tem nenhum apoio próximo.
Ocupando metade de uma folha de papel ofício e digitado no computador, o texto, que pode ser de um homem ou de uma mulher, traz o mea-culpa e revelações: “Quero pedir perdão ao povo de Mariana e a todos os fiéis que frequentam a Igreja de São Francisco por este ato de vandalismo que cometi há muitos anos. Não tive coragem de devolvê-la, quando aí estive em julho. Esta cruz pertence à coroa da imagem de São Luís Rei de França, que fica no altar direito de quem entra. Espero que, algum dia, quando retornar a Mariana, vê-la no lugar a qual ela pertence”. Cuidadoso, o remetente embalou a peça antes de colocá-la na caixa.
CULPA Para o presidente da Irmandade da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, a misteriosa chegada do objeto sacro é motivo de alegria. Já o vice, Ladim Gamarano, acredita que pode ter ocorrido algum problema sério com o remetente, que, cheio de arrependimento, resolveu se penitenciar e devolver a cruz ao seu dono, temendo “receber, de volta, o mal que fez”.
O certo mesmo, avalia, é que, durante tanto tempo, moradores de Mariana e visitantes ficaram privados de ver a imagem na totalidade, conforme foi esculpida em madeira pelo seu criador. Os integrantes da ordem acreditam que a restituição da cruz vai dar um toque especial às festividades de São Francisco de Assis, que têm o seu ponto alto no domingo, com missa às 17h e às 19h (solene).
E, diante desta carta, o responsável pelo ato de vandalismo e furto merece perdão? Celebrante durante muitos anos de missas na Igreja de São Francisco de Assis e reitor da Arquiconfraria de São Francisco dos Cordões e do Santuário de Nossa Senhora do Carmo, o cônego Paulo Dilascio, de 80, responde “sim”. “A pessoa se mostra arrependida, pediu perdão, então pode ser perdoado de forma extra confissão. A sua atitude, ao devolver a peça, demonstra maturidade, trata-se de um gesto muito bonito”, acredita o cônego, que também nunca ouviu falar sobre a existência, nessa imagem específica, do complemento da coroa.
Ex-presidente da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Antônio Pacheco Filho integra irmandade desde 1950 e nunca soube da existência do objeto roubado.
*Fonte: jornal “Estado de Minas” – Caderno “Gerais”, de 06.10.2009.
Foto: Beto Magalhães/EM/D.A.Press.
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