sábado, 27 de junho de 2015

Na comarca de Mariana

Desembargador Lincoln Rocha*

Permaneci por seis anos na pequena Comarca de Mariana como Juiz de Direito. Tive a felicidade de morar na mesma casa onde viveu Alphonsus de Guimaraens. Lá nasceu a minha filha Mônica, hoje magistrada, carreira difícil que me envaidece, a única filha a seguir a carreira do pai.
Em Mariana, infelizmente, tive muitos problemas com o advogado-deputado Celso Arinos Motta, o único do PSP, partido do Ademar de Barros. Ele me deu muita dor de cabeça e criou-me enormes dificuldades. A arrogância de quem se dizia “quase dono da cidade”, chegava às brincadeiras, dizendo que a cidade não precisava de juiz de direito, precisava apenas de um delegado “bate-pau”. Cometia muitos erros. Os processos que não lhe interessavam, eram levados por um oficial de justiça, sobre o qual tinha ascendência, para o seu escritório e os acumulava, sem levar para o juiz despachar. Entendi que precisava tomar medidas sérias. Ocorreu que, na época, infelizmente, a promoção do juiz para qualquer comarca dependia de apoio político. Eu dependia de apoio político para ascensão na carreira. E, como o conheci em Alvinópolis, quando era promotor, havia lhe pedido para me apoiar, e ele de fato o fez, o que resultou na minha promoção para a comarca de Mariana. A situação era muito delicada.
O maquiavelismo daquele deputado de grande capacidade de trabalho fazia de tudo para envolver o juiz em coisas erradas. No inicio, nos relacionávamos bem. Eu havia até almoçado em sua casa a convite dele, com o então governador Bias Fortes. Entretanto, eu percebi que nosso relacionamento não estava bom, e que havia certa irregularidade no trato com os processos. Com certo cuidado, acerquei-me dele e disse-lhe: “Dr. Celso, sou-lhe muito grato por ter me trazido para a Comarca, mas tenho recebido várias reclamações na sua forma de atuar, denúncias de que existem processos sem andamento, engavetados em seu escritório. Vou ser franco com o senhor: vou marcá-lo como Pedro Paulo do Cruzeiro marca os seus adversários”. Naquela época, o Cruzeiro, meu time do coração, tinha um jogador, de quase dois metros, chamado Pedro Paulo, que era duro na marcação.
De fato, daquela data em diante, comecei a encaminhar à Ordem dos Advogados todas as denúncias que vinham contra o advogado-deputado. Certa vez, ele se aproveitou da minha ausência e requereu habeas corpus para o preso político João Ramos Filho, que estava com prisão preventiva decretada. Como o Tribunal de Justiça pede informação ao juiz sobre a situação do processo, ele adiantou-se e respondeu, em nome do juiz, favorecendo o seu cliente. Foi a coisa mais estranha que já me aconteceu. Fui ao Tribunal e constatei que a informação não era minha, disse-lhes que não havia fornecido aquelas informações. O Tribunal, então, negou o habeas corpus e manteve preso o réu, João Ramos Filho. Possivelmente não há, no judiciário mineiro, fato mais inusitado: um advogado antecipar o pedido de informações e ele mesmo responder em nome do juiz, favorecendo o réu. Diante disso, tomei as minhas cautelas, tentando organizar a comarca e acabar com aquela situação vexatória. Já sabíamos que ele tinha em seu escritório, segundo os oficiais de justiça, mais de quinhentos processos parados. Preparei um mandado de busca e apreensão no escritório dele, para recolher aqueles processos. Cerquei-me de todas as cautelas, arrolei testemunhas ligadas ao advogado-deputado, e fizemos uma diligência através dos oficiais de justiça. Resultado: recolhemos mais de quinhentos processos na casa do advogado. Existiam processos até de Belo Horizonte e de Santa Bárbara. Conseguimos instaurar um processo criminal contra Celso Arinos Motta. Na época, eu já havia sido promovido, por merecimento, para Belo Horizonte.
São vários eventos relacionados à situação do advogado-deputado. Os excessos foram muitos – desde marcar com uma cruz a casa em que eu morava com a minha família até a sugestão de que acontecesse em Mariana o ocorrido na Comarca de Guararapes, próxima a Juiz de Fora, onde o juiz local havia sido assassinado. Confesso que fiquei alarmado, passei por uma crise nervosa tão grande que meus cabelos caíram e tive que ir a Belo Horizonte, onde me aconselharam a tirar todos os meus dentes porque, fatalmente, eles cairiam.
Felizmente, em Mariana, eu tive todo o apoio do arcebispo metropolitano Dom Oscar de Oliveira e do Delegado de Polícia, Clodomiro Silva, conhecido por Dr. Miro. Ambos me deram muita força, e o Dr. Miro até me presenteou com um revólver “Schmich Scot 32”, dizendo-me “Você precisa se defender”.
Continuei o meu trabalho com determinação e tomei algumas medidas drásticas. Nas eleições anteriores, Mariana havia sido alvo de deboche e crítica, porque nos lugares mais distantes, como fazendas, havia postos de eleição. O jornal Estado de Minas denunciava que, num daqueles postos de realização de eleição, um certo fiscal passara os votos para os eleitores, a mando do deputado Celso Arinos Motta. Resolvi, depois de consultar o Tribunal Regional Eleitoral, acabar com os postos localizados em fazendas e nos lugares mais distantes, que não dispusessem da devida segurança. Nomeei, como presidentes e secretários de mesas daqueles lugares, seminaristas de Mariana, dando a eles instruções de que só acatassem ordens emanadas do Tribunal Regional Eleitoral e que, por segurança, eles deveriam exigir o titulo eleitoral ou documento de identidade durante a votação.
O deputado Celso Arinos Motta, que, na eleição anterior, obtivera mais de seis mil votos em Mariana, caiu para quase zero; não se reelegeu e perdeu a força e o prestígio.
Passado tudo aquilo, pude exercer minha judicatura na comarca de Mariana com tranquilidade, mas arranjei um inimigo implacável. Ele me fez várias denúncias na Corregedoria de Justiça, dizendo que era ligado à UDN e que eu tinha levado vantagem naquela suposta ligação. Chegou até a citar que o Banco da Lavoura havia me passado dinheiro.
Felizmente, na magistratura mineira, eu sempre gozei de ótimo conceito, sem nada que me desabonasse. Minha ficha funcional era limpa e, por isso, não tive problemas. Na época, ele escreveu em uma petição que a paciência dele estava se esgotando e que não responderia por seus atos, caso ocorresse outro crime como o de Guararapes. Apresentei a petição ao Desembargador Agílio Ribeiro, presidente do Tribunal de Justiça. O Tribunal não tomou nenhuma medida e ficou alheio, supondo que não aconteceria nada. Voltei para a Comarca abatido. Entretanto, recebi o apoio das autoridades, e, como estava prestes a deixar Mariana, fui homenageado pelas pessoas mais representativas da cidade numa solenidade no ginásio onde eu lecionei durante certo período.
 
*O texto acima foi extraído do livro intitulado “Um Cidadão do Mundo”, às páginas 49 a 53, de autoria do falecido e saudoso Desembargador Lincoln Rocha, que foi Juiz de Direito da comarca de Mariana no período de 1959 a 1965, quando então foi transferido e promovido por merecimento para a comarca de Belo Horizonte. Ele era muito amigo de meu pai e de minha família e foi meu professor de direito comercial no curso de contabilidade no antigo e já inexistente ginásio Dom Frei Manoel da Cruz. A contumaz perseguição de caciques e coronéis políticos de Mariana, entre 1930 a 2008, contra juízes, promotores, delegados de policia e diretoras de escolas estaduais, no passado, me inspirou a fazer dois artigos neste blog: “Causos Políticos”, em 07.08.2008, e “Caciquismo e Coronelismo”, em 25.10.2012. Vale a pena lê-los de novo!

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