quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Sob Temer, indulto passa de tradição a maldição


Josias de Souza

   Há um limite depois do qual uma tradição pode transformar-se em maldição. Nos últimos 30 anos, todos os presidentes submetidos à Constituição de 1988 exercitaram seus pendores humanitários por meio do indulto de Natal. Sob Michel Temer, o que parecia natural virou imoral, pois o ato de clemência foi estendido em 2017 a presos condenados por corrupção. Submetido a contestação judicial, Temer decidira não editar o decreto de indulto neste final de 2018. Diante de apelos da Defensoria Pública, voltou atrás. Espera-se que não se atreva a reincidir no escárnio.
 
   Graças a um pedido de vista do ministro Luiz Fux, o julgamento sobre o indulto decretado por Temer no ano passado continua em aberto no Supremo Tribunal Federal. A liminar anti-corruptos ainda está de pé. Mas se quiser encrespar, Temer pode reeditar em 2018 o mesmo indulto tóxico do ano passado. Afinal, já se formou no plenário da Suprema Corte uma maioria —seis votos num total de 11— a favor da tese segundo a qual o presidente tem poderes discricionários para regulamentar a concessão do indulto como bem entender.
 
   Se tiver restado a Temer um pingo de compostura, ele excluirá os corruptos da fila do indulto por bom senso, não por respeito aos prazos do Supremo. A corrupção no Brasil é uma endemia. Quem olha ao redor só enxerga podridão. Vale a pena listar, por eloquentes, alguns dos podres:
 
1) A seis dias de se tornar uma caneta sem tinta, o próprio Temer foi denunciado três vezes —duas por corrupção passiva e uma por obstrução de justiça. Responde a um inquérito. E há pedidos de abertura de mais cinco.
 
2) Geddel Vieira Lima, o ex-ministro que cuidava da coordenação política do governo Temer, foi em cana depois que a Polícia Federal estourou o bunker de Salvador, onde ele guardava R$ 52 milhões acondicionados em malas
 
3) Lula foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Está preso há oito meses. A segunda condenação pode chegar junto com as águas de março. Dilma Rousseff, sua antecessora, foi enviada ao banco dos réus no inquérito batizado de "quadrilhão do PT."
 
4) Aécio Neves, o tucano que disputou a Presidência da República em 2014, encontra-se soterrado por suspeitas. Foi denunciado por corrupção passiva. O correligionário Eduardo Azeredo, ex-governador de Minas, foi condenado e preso no caso do mensalão mineiro do PSDB.
 
5) José Dirceu, ex-chefão da Casa Civil de Lula, coleciona sentenças que somam quatro décadas de cadeia. Está solto graças a uma liminar da Segunda Turma do Supremo.
 
6) Dois ex-ministros da Fazenda da era PT estão encrencados na Lava Jato. Um, Antonio Palocci, é um corrupto confesso. Outro, Guido Mantega, está com os calcanhares de vidro sob holofotes.
 
7) Dois ex-presidentes da Câmara estão presos. Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) foi premiado com uma transferência da cadeia para a prisão domiciliar. Eduardo Cunha, já condenado num dos inúmeros processos que responde, continua na tranca.
 
   Relator do processo sobre indulto no Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso realçou outro flagelo da criminalidade oligárquica: "Ninguém assume os próprios erros e pede desculpas ao povo brasileiro. Todos alegam que estão sendo vítimas de perseguição política. Ou seja: não houve corrupção nem desvio de dinheiro. Foi tudo uma miragem, uma invenção de procuradores, juízes e da mídia opressiva."
   Barroso apimentou sua argumentação: "Uma razão para essa atitude, além de uma dose elevada de cinismo, é que as coisas erradas foram naturalizadas de uma tal maneira que as pessoas simplesmente perderam o senso crítico."
 
   Nesse contexto, qualquer decreto de indulto que incluísse no rol dos beneficiários da clemência presidencial os criminosos de colarinho asseado ultrapassaria em muitos quilômetros o limite depois do qual uma tradição transforma-se em maldição. Sem condições de dar continuidade à sua carreira política, Michel Temer inspiraria nome de rua. Assim como há a Rua Voluntários da Pátria, passaria a existir a Rua Traidores da Pátria.

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