domingo, 6 de maio de 2012

A Voz dos Bronzes*

                                   Moura Santos
A majestosa música sacra hoje, infelizmente, está banida dos templos, substituída por novos rituais, não se ouvindo mais o sublime cantochão, que empolgava o ambiente de comoção e religiosidade, até então conhecido. Cedeu-lhe o lugar para introdução de cânticos corriqueiros e vulgares, tanto na letra como nas melodias. São arranjos medíocres, sem nenhuma expressão de arte e de espiritualidade. Só os sinos das velhas cidades mineiras resistiram à modernidade da Igreja. Devemos conhecer a linguagem dos nossos bronzes vetustos, que do alto das torres cantam, há séculos, a epopeia de um passado dentro das maravilhas da fé e do culto divino. Chamam os fiéis à prece. Choram os mortos, anunciam festividades o ano inteiro. Marcam passagens e triunfos sociais, religiosos e históricos. Acompanhando o ritmo da música e dos cânticos litúrgicos, os sinos são instrumentos sonoros que exprimem alegria, tristeza, paixão, amor e uma série de sentimentos, condizendo com a altura onde são colocados para perpetuidade de uma Fé, que se alteia acima de tudo. Por isso, têm eles a sua poesia e a sua história e profunda significação espiritual. As ondas sonoras que projetam representam a prece, com a diferença apenas que a prece dos sinos faz-se de dentro para fora, enquanto que a do homem se dirige misticamente de dentro para o alto: Sursum corde.   Arautos de Deus
A linguagem sentimental dos bronzes fala ao coração de todos, desde o berço à sepultura, segue-lhes os passos desde o batismo até a última morada. Todos os lances da vida humana cristianizada estão na evocação de uma badalada de sino e foi por esse princípio e por razão natural que os arrojados construtores do barroco emprestavam o maior cuidado e especial atenção no delinear esses monumentos de arte, colocando em remate torres altaneiras e atrevidas para sustentar pesados bronzes, arautos sinfônicos da palavra de Deus.
Mariana, capital de um mundo antigo em Minas Gerais, teve os seus construtores e entalhadores, artistas consumados, que delinearam suas bicentenárias igrejas. Sé Catedral, São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Rosário, Arquiconfraria, Mercês, além de outras capelas, ressaltam à primeira vista, na competição artística de seus idealizadores. Irmandades com patrimônio respeitável, constituídas de leigos, regendo-os uma vontade hercúlea de construir maravilhas, o primeiro lance que as preocupava era a estrutura da Torre para sustentar os bronzes de toneladas impressionantes. E nelas colocavam sinos fundidos em bronze com mistura de ouro em alto teor e grande quantidade de prata, segundo consta de documentos ora consultados, para efeito da sonoridade em escala musical. Os campanários entravam logo no regime de toques especiais: festivos, fúnebres, repiques dobrados, santos em glória e entradas convencionais para missas, procissões, enterros e depósitos à noite.
Os Artistas do Badalo
Os sineiros eram abalizados na arte do badalo e o acionavam com maestria e gosto bem apurado. Pedro Tortela, na Sé Catedral, conseguiu tocar a Sinhá do balão lá vai pau, samba carnavalesco do folclore marianense, façanha que o Arcediago não gostou, azucrinando-o pelo irreverente abuso. Na igreja de São Francisco de Assis, outro sineiro famoso imaginou com originalidade um toque que quer dizer: Dá no pai, dá na mãe, dá no filho também ou então na repetição métrica idealizada por João Gato: Zé Venero, Zé Venero, Sô Cônego Tobias. E nos dobres fúnebres, os sinos menores diziam: Niquinho pau d’água, Niquinho pau d’água, alusão aos ziguezagues de um inveterado e educado boêmio pelas ruas da cidade, o conhecido filosofo e poeta repentista, o afável Nico do Beco, sempre acompanhado dos parceiros João Julio, Zé dos Óculos, Zé Pinto, Mestre Luiz, Zé Sacy, Tondy, todos com ares de artistas, literatos, oradores, músicos, cada um com sua mania de importantes, que os tornavam ídolos da população e, particularmente, das crianças. O Comissário da Ordem Terceira, aplainando as polêmicas, censuras e críticas, aprovou a genial criação que se tornou inspiração para dobrados de bandas de Músicas, quando a União XV de Novembro, com sucesso, tocou Os Sinos de Mariana, do consagrado maestro Aníbal Pedro Walter.
O exemplo fez escola e teve autênticos sucessores nas figuras de Zé Xiringa, Fancy Caiau, Diogo da Conceição, Chico Cidade, Mané Rita, Zé Supimpa, Mané Donzela, Chico Cabeça, Zé Quitute e Ceci Bandeira, exímios tocadores de sinos de Mariana. Era uma profissão humilde, sem remuneração, mas honrosa para os artistas do badalo. O mais celebre, Chico Cidade, morreu tragicamente nos dias de carnaval, por ocasião das quarenta horas, quando dobrava o sino do Santíssimo da Catedral. Ao impulsionar o pesado bronze para os três bam baús convencionais, o sineiro que estava completamente bêbado deixou-se prender às cordas que o envolveram e o sino, depois de muitas reviravoltas, o atirou estraçalhado nas lajes da rua. E toda população lamentou profundamente: morreu o Chico Cidade!
Ritual
Nas igrejas de Irmandades e Ordens Terceiras, os sinos obedecem ao ritual de cada comunidade. Tem o seu toque convencional. Quando morre um Irmão, os dobres fúnebres são três sinais; quando mulher, dois sinais. Para crianças até sete anos repicam-se os quatro sinos. Para os que morrem fora da cidade, os sinais são dados às 14 horas. Para funerais de bispos, nove badaladas e cinco sinais de três em três horas. Para padres até monsenhor, cinco sinais ao dia. Para anunciar a morte do papa: doze badaladas, seguidas de nove sinais, de duas em duas horas, até o sétimo dia.
Assim, quem reside em Mariana ou nas cidades históricas, que ainda conservam tradição de 200 anos, conhece e distingue a voz dos bronzes e pode decifrar logo pelo toque dos sinos, se morreu um homem, uma mulher, um anjinho, uma criança, um bispo, um papa, ou melhor, se há missa, procissão, enterro e festas religiosas ou profanas. Os sermões principais do ano eram anunciados de vésperas com o dobre do sino grande da Catedral.
Para os toques solenes da Semana Santa, o sineiro obedecia ao seguinte programa do mestre de cerimônias.
Quarta-feira santa, às 12 horas, um repique com os quatro sinos, Santos em Glória, nove vezes e, logo a seguir, três repiques longos e festivos. Às 14 horas, três repiques com os quatro sinos. Às 18,30 horas, um repique com quatro sinos e o do Relógio marcando o grave; dobra o sino das Almas, conservando-o invertido. Às 19 horas, desce o sino das Almas, um repique, em seguida apruma o bronze com repique dobrado e muitos bambaus, até colocá-lo de pé, isto é, com a boca para cima.
Quinta-feira santa, às 9 horas, dois repiques – levanta o bronze e o abaixa com repiques dobrados; depois, mais dois toques ritmados e entrada para o Pontifical Solene. Às 9,30, outra entrada. Às 10 horas, chegada do bispo oficiante ao som do Ecce Sacerdos Magnus. No Glória, repique vibrante e compassado, repetindo-se na elevação. Às 12 horas, novos repiques. Às 17 horas, um repique para aprumar o bronze e o abaixa com vibrantes repiques. Depois do repique no Glória, na cerimônia de Lava-pés, silenciam os sinos até zero hora de Domingo da Ressurreição, substituindo-os a velha Matraca, que acompanha a procissão da Paixão ao lado da Verônica.
A voz dos bronzes tem sua historia e tradição. O Chantre do Cabido, de sua cadeira canônica, a cada instante, nas cerimônias brada: Tá na hora, velho Irmão, apruma o bronze
*Artigo publicado no jornal “Estado de Minas”, de 17.03.1978, do qual Waldemar de Moura Santos foi colaborador assíduo.

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