quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A voz dos bronzes

Moura Santos*
Memória religiosa
(...) Os artistas do badalo
Os sineiros de Mariana eram abalizados na arte do badalo e o acionavam com maestria e gosto bem apurado. Pedro Tortela, na Sé Catedral, conseguiu tocar a Sinhá do balão lá vai pau, samba carnavalesco do folclore marianense, façanha que o Arcediago não gostou, azucrinando-o pelo irreverente abuso.
Na igreja de São Francisco de Assis, outro sineiro famoso imaginou com originalidade um toque que quer dizer: dá no pai, dá na mãe, dá no filho também ou então na repetição métrica idealizada por João Gato: Zé Venero, Zé Venero, Sô cônego Tobias. E nos dobres fúnebres, os sinos menores diziam: Niquinho pau-d´água, Niquinho pau-d´água alusão aos ziguezagues de um inveterado e educado boêmio pelas rua da cidade, o conhecido filosofo e poeta repentista, o afável Nico do Beco, sempre acompanhado dos parceiros João Julio, Zé dos Óculos, Zé Pinto, Mestre Luiz, Zé Sacy, Tondy, todos com ares de aristas, literatos, oradores, músicos, cada um com sua mania de importantes, que os tornavam ídolos da população e, particularmente, das crianças. O Comissário da Ordem Terceira, aplainando as polêmicas, censuras e críticas, aprovou a genial criação que se tornou inspiração para dobrados de Bandas de Músicas, quando a União XV de Novembro, com sucesso, tocou Os Sinos de Mariana, do consagrado maestro Aníbal Pedro Walter.
O exemplo fez escola e teve autênticos sucessores nas figuras de Zé Xiringa, Fancy Caiau, Diogo da Conceição, Chico Cidade, Mané Rita, Zé Supimpa, Mané Donzela, Chico Cabeça, Zé Quitute e Ceci Bandeira, exímios tocadores de sinos de Mariana. Era uma profissão humilde, sem remuneração, mas honrosa para os artistas do badalo. O mais célebre, Chico Cidade, morreu tragicamente nos dias de carnaval, por ocasião das quarenta horas, quando dobrava o sino do Santíssimo da Catedral. Ao impulsionar o pesado bronze para os três bambaus convencionais, o sineiro que estava completamente bêbado deixou-se prender às cordas que o envolveram e o sino, depois de muitas reviravoltas, o atirou estraçalhado nas lajes da rua. E toda população lamentou profundamente: morreu Chico Cidade!
Ritual
Nas igrejas das Irmandades e Ordens Terceiras, os sinos obedecem ao ritual de cada comunidade. Tem o seu toque convencional. Quando morre um Irmão, os dobres fúnebres são três sinais; quando mulher, dois sinais. Para crianças até sete anos repicam-se os quatro sinos. Para os que morrem fora da cidade, os sinais são dados às 14 horas. Para funerais de bispos, nove badaladas e cinco sinais de três em três horas. Para padres até monsenhor, cinco sinais ao dia. Para anunciar a morte do papa: doze badaladas, seguidas de nove sinais, de duas em duas horas, até o sétimo dia.
Assim, que reside em Mariana ou nas cidades históricas, que ainda conservam tradição de 200 anos, conhece e distingue a voz dos bronzes e pode decifrar logo pelo toque dos sinos, se morreu um homem, uma mulher, um anjinho, uma criança, um bispo, um papa, ou melhor, se há missa, procissão, enterro e festas religiosas ou profanas. Os sermões principais do ano eram anunciados de vésperas com dobre do sino grande da Catedral.
Para os toques solenes da Semana Santa, o sineiro obedece ao seguinte programa do mestre de cerimônias.
Quarta-feira santa, às 12 horas, um repique com os quatro sinos, Santos em Gloria, nove vezes e, logo a seguir, três repiques longos e festivos. Às 14 horas, três repiques com os quatro sinos. Às 18,30 horas, um repique com quatro sinos e o do Relógio marcando o grave; dobra o sino das Almas, conservando-o invertido. Às 19 horas, desce o sino das Almas, um repique, em seguida apruma o bronze repique dobrado e muitos bambaus, até colocá-lo de pé, isto é com a boca para cima.
Quinta-feira santa, às 9 horas, dois repiques – levanta o bronze e o abaixo com repiques dobrados; depois, mais dois toques ritmados e entrada para o Pontifical Solene. Às 9,30, outra entrada. Às 10 horas, chegada do bispo oficiante ao som do Ecce Sacerdos Magnus. No Glória, repique vibrante e compassado, repetindo-se na elevação. Às 12 horas, novos repiques. Às 17 horas, um repique para aprumar o bronze e o abaixá-lo com vibrantes repiques. Depois do repique no Glória, na cerimônia de Lava-Pés, silenciam os sinos até zero hora de Domingo da Ressurreição, substituindo-os a velha Matraca, que acompanha a procissão da Paixão ao lado da Verônica.
A voz dos bronzes tem sua história e tradição.
*(Artigo publicado pelo jornalista Waldemar de Moura Santos, no jornal “Estado de Minas”, de 17.03.1978).

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